Joanna Francesa: Jeane Moreau frequentou botequim, em União dos Palmares, onde se bebia cerveja e cachaça

As principais cenas do filme foram gravadas na Fazenda Anhumas, em União dos Palmares, onde a atriz Jeane Moreou também ficou hospedada.
Jeane Moreau, nas filmagens de Joanna Francesa, na Fazenda Anhumas.

“Em 1973, estreou o filme Joanna Francesa, coprodução franco-brasileira, dirigido pelo cineasta alagoano Cacá Diegues, que tinha a atriz francesa (Jeane Moreau) no papel principal. Boa parte das locações do filme foi realizada em Alagoas, o que movimentou a sociedade caeté da época.

Mas entre a ideia de gravar um filme com Jeane Moreau em Alagoas e sua estreia nas telas do cinema, houve um longo percurso. Tudo começou quando, após o AI-5, Cacá Diegues resolve se exilar na Europa, inicialmente na Itália e depois na França.

Em Paris, Cacá Diegues se inseriu no fascinante universo do cinema francês, tendo conhecido diversos cineastas e atores. A convite de Jacques Rivette, Cacá Diegue foi assistir a uma sessão privada do filme L´amour fou (O amor feio), tendo recebido a garantia de que lá estaria presente o grande cineasta francês Jean Renoir.

“Jeanne Moreau estava presente àquela sessão de L’amour fou, e Rivette me apresentou a ela. A atriz me disse que havia visto Os herdeiros e que adoraria fazer um filme no Brasil, um país que sempre quis conhecer. Me lembrei de um romance que andar tentando escrever, quando ainda estava no Brasil. Tratava-se de uma trama narrada através de cartas, uma correspondência entre membros de uma família decadente do interior de Alagoas, na passagem do engenho artesanal para a usina industrial”

Cacá Diegues recorda que o livro se chamaria Galega, palavra utilizada em Alagoas para denominar uma loira. Ao ouvir a declaração de Jeanne Moreau que gostaria de fazer um filme no Brasil, ele imediatamente pensou que a atriz francesa poderia fazer o papel da protagonista, uma prostituta que vinha do sul do país para se casar com um senhor de engenho. Foi assim que, ao invés de Galega, o filme passaria a se chamar Joana Francesa.

Só havia um pequeno problema. O roteiro do filme ainda não estava pronto. Cacá Diegues confessa que teve que omitir este fato para Jeanne Moreau, e tendo a francesa aceito o convite, o alagoano passou a se dedicar a concluir o referido romance, assim com a transformá-lo em roteiro de filme.

Cacá Diegues já estava de volta ao Brasil em 1970, mas somente no final de 1972 é que ele consegue começar a gravar o filme Joanna Francesa. Ele se recorda que “Em Alagoas, o apoio a Joanna Francesa seria generoso. Do governador biônico aos empresários locais, de intelectuais consagrados a jovens artistas, todos se dispunham a ajudar. Eu era o filho da terra que voltava trazendo uma estrela internacional para filmar no Estado. Nada poderia ser mais gratificante”.

As principais cenas do filme foram gravadas em uma fazenda em União dos Palmares. Quando a equipe do filme chegou à cidade, inclusive com a presença de Jeanne Moreau e Cacá Diegues, “a multidão cercava a porta da prefeitura local, uma bandinha tocava velhas marchas militares. O prefeito e outros políticos da região faziam discursos empolgados, diante de Jeanne cansada e tonta”, conta o diretor alagoano, acrescentando que a francesa fez questão de ficar e ouvir todas as homenagens.

“Jeanne ficou hospedada na Fazenda da Baronesa (Fazenda Anhumas), onde iríamos rodar a maior parte do filme.(…) Ao sol causticante e sem proteção alguma, começamos a filmar no canavial da Baronesa em meados de novembro, quando o calor na região já é insuportável. Se era duro para nós, para Jeanne, vinda diretamente do outono parisiense, era uma verdadeira tortura que suportava com galhardia”, relata Cacá Diegues.

Um fato interessante ocorreu quando, depois de algumas semanas de gravação na fazenda, Jeanne Moreau começou a sentir falta da vida urbana. Foi então que a grande estrela do cinema começou a frequentar um botequim em União dos Palmares. “Lá dentro, bebia-se cerveja e cachaça, contavam-se piadas em francês, falava-se com muito amor e exaltação de cinema”, tudo para deleite dos morados de União.

Também houve momentos estressantes que marcaram a presença da francesa em Alagoas. Cacá Diegues conta que, em um dia cansativo de gravação, Jeanne perdeu a paciência com a produção, quando se deu conta de não havia mais nenhuma Coca-Cola para ela matar a sede. Esta seria a única exigência da atriz francesa nas filmagens: ter à sua mão, sempre que solicitasse, uma garrafa gelada do refrigerante.

Quando o Natal de 1972 chegou, a equipe do filme Joanna Francesa foi para Maceió. Cacá Diegues lembra que Jeanne Moreau ficou hospedada em uma casa alugada pela produção, em frente aos Sete Coqueiros, entre as praias de Ponta Verde e Pajuçara. Na época, esta região da cidade era pouco habitada, o que não foi suficiente para garantir que a presença da atriz francesa passasse desapercebida.

“Quando a população da cidade descobriu que Jeanne estava nos Sete Coqueiros, a romaria à porta de sua casa se tornou intensa. Sem nenhuma violência ou fanatismo, como costuma ocorrer com as celebridades de hoje, as pessoas chegavam ali com presentes, em geral comida e artesanato locais. Não tentavam entrar na casa ou aborrecer Jeanne com conversa fiada. Entregavam o que haviam trazido, moquecas de sururu e doces de caju, rendas de bilro ou redes de dormir, e depois iam embora, deixando-lhe as boas vindas e saudando a presença da atriz em Alagoas”, conta Cacá Diegues, que também recorda que, durante do Ano Novo, Jeanne passou uns dias hospedada em uma propriedade à beira-mar de Ipioca, curtindo as belas praias da região.

Durante as filmagens de Joanna Francesa, também esteve na capital alagoana o estilista Pierre Cardin, que fez parte da equipe do filme. Cacá Diegues recorda que alguma senhoras da sociedade alagoana organizou em Maceió um desfile com produtos de Cardin, quando Jeanne se ofereceu para desfilar na passarela.

Ao se despedir de Maceió, a atriz francesa deixou um bilhete para o diretor alagoano, que até hoje guarda com carinho: “Je suis hereuse de faire ce filme avec toi, de t´avoir rencontré. Joanna será parmi mes plus chères amies. Noel, le jour de l´an, me donnent l´occasion de te dire que je t ´aime et je te remercie pour autant d ´annes que tu veux. Tona mie, Jeanne” (“Estou feliz em fazer esse filme com você, por te reecontrar. Joanna estará entre meus queridos amigos. No Natal, no Ano Novo, me dê a oportunidade de dizer que amo você e agradeço por quantos anos você quiser. Sua amiga, Jeanne”).

Eleito imortal da Academia Brasileira de Letras em 2018, Cacá Diegues comentou em sua autobiografia que “os acontecimentos em Joanna Francesa são quase todos inspirados em histórias reais que ouvi durante a infância e adolescência nos verões de Maceió”. Na realidade, Cacá Diegues sempre fez questão de aflorar em seu trabalho as coisas de Alagoas, especialmente quando produziu a Sétima Arte. Vários de seus filmes tiveram locações no Estado de Alagoas ou foram baseados em situações relacionadas a fatos e personagens alagoanas.

Neste contexto, em O grande circo místico (2018), filme indicado a representar o Brasil no Oscar, Cacá presta uma homenagem ao conterrâneo Jorge de Lima. Em 2003, dirige Deus é Brasileiro, que tem locações em Maragogi, Penedo e Piaçabuçu. Quilombo, sobre o movimento de libertação negra ocorrido em Alagoas, foi filmado em 1984. E não para por aí: Bye Bye Brasil, de 1979, teve locações em Piranhas, Murici e Maceió. Em 1966, a película A Grande Cidade fala de uma família alagoana que migra para o Rio de Janeiro, e em 1964, dirige Ganga Zumba, sobre um dos heróis do Quilombo dos Palmares, ocorrido em Alagoas.

Mas Joanna Francesa tem um lugar especial na vida de Cacá Diegues, que o considera um de seus melhores filmes. Ao que parece, Jeanne Moreau também gostou do filme, tanto que Cacá recorda que “em 2008, a Cinameteca Francesa prestou uma homenagem a Jeanne Moreau por seus 80 anos e ela selecionou alguns filmes para retrospectiva de seu trabalho. Joanna Francesa estava entre eles”.

No ano seguinte, Jeanne Moreau viria pela última vez ao Brasil, desta vez para ser homenageada no Festival do Rio. Como não poderia deixar de ser, foi Cacá Diegues que lhe entregou a placa.

Em 2017, após a morte de atriz francesa aos 89 anos, Cacá Diegues escreveu um artigo cujo título relembra a frase de Orson Welles, que considerava a atriz como a melhor do mundo. Emocionado, o alagoano registra que “com a morte de Jeanne Moreau, morre um pedaço do cinema”. Sorte a de Alagoas que, ainda que discretamente, fez parte deste roteiro”.

(Trecho do artigo “Cacá Diegues, seus filmes “caetés” e a passagem da “maior atriz do cinema mundial” por Alagoas”, escrito por Fábio Lins, publicado no site Cultura e Viagem).

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