Uma característica do autor é o lirismo sadio e arejado de quem sabe das agruras da vida e também das delícias do voo e, sobretudo, do sobrevoo
João Carlos Taveira *
Especial para o Jornal Opção
Acabo de reler “Sortilégio Possível” (Editora Bagaço, 2015), de Ivan Marinho — ator, pintor e poeta. A primeira leitura aconteceu quando o texto ainda era inédito e posso afirmar que este é certamente o mais maduro livro de poemas de Ivan Marinho. E talvez o mais oral e visual, desde que resolveu descansar os pincéis para abraçar a poesia, uma vez que se divide já há algum tempo em “três metades” distintas: as artes cênicas, as artes plásticas e a literatura. Sem contar, naturalmente, com a inconfundível disposição para voar.
Fragmento do acaso
Sem gravidade flutuam
Estilhaços de um espelho
E cada parte reflete
Um fragmento do acaso.
Giram dando a impressão
De serem um universo
E são, de certo, mil vezes,
A expressão original
Da mesma parte perdida
A se olhar eternamente.
Ali, imagem pra sempre,
Como se fosse real.
E menos se vê no mundo
E no mundo só se vê
Como entérica alegria
Buscando a rima vazia
De não ser, só parecer.
Pois bem. O livro está simetricamente construído sobre dois eixos: poemas curtos e estrofes de quatro versos, algumas rimando, mas a maioria sem rima alguma, bastando-lhes, quando muito, a métrica para alcance do ritmo e da plena musicalidade. Ivan se mostra muito à vontade nas redondilhas maior e menor, e grande parte dos seus poemas encontra-se esculpida em versos brancos.
Ororubá
Dançando em sua cabeça
Voltas ocres de corridas
Ondulam verdes cabelos
Juntos, outros, ao redor.
Em cada volta, a memória
Gesta um breve esquecimento
Para no centro um encontro
Ancestral se revelar.
Memória de gerações
Despertada em sentimentos
Perdidos anos a fio
Das lembranças, das histórias…
E se cabelos são matas,
Tantas voltas, todos um,
No meio da ebulição
Surge, como larvas, homens
E a guerra se faz canção.
Outra característica do autor deste cuidadoso trabalho é o lirismo, não o lirismo raquítico e sifilítico magistralmente referido por Manuel Bandeira, mas o lirismo sadio e arejado de quem sabe das agruras da vida e também das delícias do voo e, sobretudo, do sobrevoo. Ivan, com seus versos, lúcidos e antenados, sabe que o sonho por si só não basta, é preciso colher “nas miragens a munição para usá-la quando no descaminho, na vil presença avessa e inesperada”. Por isso, sem titubeio, vem praticando uma poesia também de preocupação social, em que o homem, embora sujeito a toda sorte de desmandos, é senhor absoluto do rumo de seus ideais. Basta ir à luta. E parece nos dizer também que esse homem, mesmo vivendo sob os tacões de uma cultura escravocrata ainda dominante entre nós, tem conseguido, aos poucos, livrar-se do desconforto do complexo de colonizado.
Pai, perdoai!
Massa, úmida, de barro
Amassada pelas mãos
Cúmplices ou desconhecidas
Modelando a intenção.
Bloco que forma e reforma
Sempre perfeito, pois um,
Quando deforma ignora,
Se não se compara algum.
E cresce lá, grande barro,
Sem jamais querer o forno
Se o fim é a eternidade:
Quente nem frio, só morno.
Sucedem mãos, outras mãos,
Tão mesmas a modelar
A forma que se desfaz
E se refaz sem mudar
Porque não sabe o que faz.
“Sortilégio Possível” está muito bem editado, e também foi bem aceito por seus leitores, que não pouparam encômios ao autor alagoano radicado em Pernambuco. Aliás, Ivan bem os merece, pois seu livro vem de demarcar um terreno fértil e promissor para o pouso tranquilo deste arquiteto de espantos. Ivan Marinho, além de amplidões, nuvens e cores, tem, desde já, espaço garantido na grande seara da nova poesia brasileira.
Ivan Marinho (de Barros Filho) nasceu em Maceió, Alagoas, e teve sua formação na Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como educador e economista, respectivamente.
Ainda adolescente, subiu em palanques, com recitais de poesia, na luta por eleições diretas e pela anistia política. Foi diretor do departamento de Cultura da cidade do Cabo de Santo Agostinho, em meados da década de 1990, onde criou o Encontro Celina de Holanda de Poetas Recitadores e o Encontro Pernambucano de Coco de Roda.
Norteado pelo desejo de participação ativa da sociedade sobre seus destinos políticos, criou o primeiro Conselho de Cultura do interior do Estado de Pernambuco. Elaborou e coordenou, com a poetisa Cida Pedrosa, o Recitata (Concurso de Poesia Oral do Recife), em que foi selecionado para várias coletâneas promovidas pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Pernambuco (Sintepe).
Foi um dos vencedores do Prêmio Bandepe: Valor Pernambucano, e venceu o Festival Jaci Bezerra de Poesia, do Centro de Estudos Superiores de Maceió e o Prêmio Patativa do Assaré do Ministério da Cultura.
Como artista plástico, sua pintura percorreu escolas públicas, igrejas, restaurantes, feiras, assembleias legislativas, câmaras municipais… e até praças públicas, como a promovida pela Prefeitura do Cabo na Praça Marcos Freire e pela Prefeitura do Recife, no Largo do Livramento, com participação de ícones da música pernambucana, como Maciel Melo, Mestre Salustiano, Fernando Filizola, Alan Sales e Ronaldo Aboiador.
Em 2009 recebeu o título de cidadão cabense e em 2010 se tornou o primeiro presidente da Federação dos Bacamarteiros de Pernambuco (Febape). Publicou, no ano de 2000, o livro “Anti-Horário” e participou como convidado das antologias “Poesias e Crônicas de uma Terra de 500 anos”, da Prefeitura do Cabo, e da coleção Marginal, da Prefeitura do Recife, com o título de “Terra da Poesia”, da Editora Carpe Diem. É membro da Galeria dos Mortais e da Academia Cabense de Letras.
Obras publicadas de Ivan Marinho
“Anti-Horário” (poesia), edição do autor, 2000.
“ABC da Economia — Micro e Macroeconomia em Cordel” (ensaio em versos), edição do autor, 2010.
“Sortilégio Possível” (poesia), editora Bagaço, Recife, 2015.
“O Menino Que Comia Cores” (infantil), editora Bagaço, 2016.
*João Carlos Taveira é poeta e crítico, com vários livros publicados. É colaborador do Jornal Opção.