Caso Telegram. O direito à privacidade na internet tem que estar na Constituição

João Caproni Pimenta – DCO

Quando alguém fala em “direitos democráticos” rapidamente a mente dos mais bem informados volta a Paris de 1789, onde o terceiro estado, a burguesia e o povo pobre, se insurgiu contra o clero e a nobreza e fundou o Estado moderno.

Com ele, a igualdade perante a lei, o devido processo legal, o direito ao voto, a liberdade de expressão, a inviolabilidade do domicílio, a inviolabilidade de correspondência e outras coisas com as quais a sociedade moderna está acostumada, ou pelo menos estava.
Com o advento da internet a inviolabilidade de domicílio e de correspondência se foram. A maioria das pessoas nem viu, mas eles se foram mesmo assim.

Não é segredo para ninguém que seu celular ouve suas conversas. Não é segredo para ninguém, depois do caso Snowden, que o governo dos EUA tem livre acesso aos celulares das pessoas, que podem acessar webcams de computadores e ver o que passa por ali, que podem ler conversas suas, que frequentemente fazem isso. O mundo está sendo espionado, na era do capitalismo em decadência Bill Gates e Mark Zuckerberg venceram Robespierre.

Depois do escândalo do projeto Prisma, as grandes empresas começaram a implementar a chamada “criptografia ponta-a-ponta”. Uma função digital que basicamente significa o seguinte: seus aparelhos são cifradas, só poderão ler as conversas nele as partes que estão na conversa, para o resto das pessoas, os dados aparecem embaralhados, ininteligíveis.

Em grande medida isso funciona. Funciona se o governo não tiver um interesse pessoal em você. Impede que eles joguem uma palavra-chave e apareça uma conversa sua com sua tia. Esse benefício é, também, apenas parcial.

Muitos não sabem, mas os backups de vários aplicativos de mensagem bem populares, como o WhatsApp, não são protegidos. Recentemente eles anunciaram que iriam tampar este furo, que permitia que a CIA “desse um google” e novamente a conversa com sua tia aparecesse. A validade da implementação feita pelo WhatsApp é questionável, requer testes, principalmente o teste do tempo, pra ver se realmente é segura.

A principal proteção dos usuários tem sido até agora a não-cooperação do provedor de correspondência. O Telegram, recentemente banido pelo ministro Alexandre de Moraes do STF, não promove a criptografia ponta-a-ponta, mas uma outra forma de cifra, chamada criptografia em nuvem. Nesta modalidade o servidor do Telegram consegue descriptografar o conteúdo, isso é feito, de acordo com o criador do serviço, para permitir vários das funções do serviço, como chats de 200 mil pessoas, transmissões ao vivo, envio de arquivos grandes.

Ainda que não seja uma impossibilidade, é comprovado que manter que essas funções com a criptografia ponta-a-ponta é uma tarefa bastante complicada. Principalmente para uma equipe pequena como a deles. Eles fornecem a criptografia ponta-a-ponta para os chats secretos, mas não é ativada por padrão, diferente do WhatsApp. Um quadro sigiloso que foi vazado do FBI mostra que o acesso às informações no Telegram é bem mais difícil que o acesso no WhatsApp ou iMessage da Apple. Isso não é dificuldade técnica, consiste no fato de que o Telegram não coopera muito.

Mais ainda, o Whatsapp fornece o que eles chamam de “Pen Register”, o registro de quando você enviou mensagem para alguém, para quem enviou, quando você acessou o serviço e com quem você conversou, e se disponíveis, os dados geográficos do seu acesso. Este acesso é possível quase em tempo real. Estes são os chamados “metadados”, informações sobre a informação, o conteúdo das conversas. O Signal, outro aplicativo voltado à privacidade, fornece também pouquíssimas informações, por não as ter.

Mas a não cooperação das empresas ou um sistema rígido de comunicação não serve de nada se o serviço não está disponível. O Telegram já foi banido em 10 países, o Signal foi banido em 4, mesmo sendo bem menos usado.

O Telegram integra função de chat com funções de rede social e censura praticamente nenhum canal, modera praticamente nenhum conteúdo. O STF o bloqueou por isso. Eles capitularam e foram readmitidos. Mas ninguém disse que não serão bloqueados indefinidamente.

Uma pergunta que o público pode estar se fazendo é: como se bloqueia um aplicativo ou um site? No caso do Telegram foi feito de duas formas: a primeira foi mandando as lojas de aplicativo do Google e da Apple expulsarem o Telegram. Isso impede novos downloads de forma fácil, mas é facilmente contornado no Android, maioria dos usuários no Brasil. A mais importante medida foi a de orientar os provedores de internet a bloquear o acesso ao Telegram. Assim, um brasileiro não conseguiria acessar o serviço seja com o app ou com o navegador.

Rapidamente começou a ser divulgado como funciona para criptografar o seu acesso à internet para que as operadoras não saibam para onde está indo o seu acesso e não possam então te bloquear. Uma media tão eficaz que o Ministro do STF ameaçou de multar quem fizesse isso também, no valor de R$ 100 mil.

A verdade é que as operadoras sabem todos os sites que sua residência acessou e, com um pouco de trabalho, até qual computador na residência foi o responsável pelo acesso. Isso é possível pois não há a geração de Rede Virtual Privada (VPN, em inglês) com criptografia.
A geração de VPNs é vista como algo que requer um sofisticado conhecimento técnico. Não é. Existem roteadores que o fazem por padrão. É possível fazê-lo de tal forma que nem a própria VPN possa saber o que foi acessado e onde.

A esquerda tem que atualizar o programa democrático para o século XXI. É preciso exigir que se crie uma VPN nacional e pública, que funcione com código aberto, que possa ser auditada pela população, que não mantenha registros de uso das pessoas, que todos os roteadores das operadoras brasileiras atuem por essa via.

Que seja criada uma inviolabilidade de correio e navegação eletrônica, que o direito a privacidade e à liberdade de expressão sejam restabelecidos nas formas que cabem a eles neste século.

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