Anjo Daltônico

FOTOMONTAGEM DE JORGE DE LIMA - PINTURA EM PÂNICO

JORGE DE LIMA

Tempo da infância, cinza de borralho,
tempo esfumado sobre vila e rio
e tumba e cal e coisas que eu não valho,
cobre isso tudo em que me denuncio.

Há também essa face que sumiu
e o espelho triste e o rei desse baralho.
Ponho as cartas na mesa. Jogo frio.
Veste esse rei um manto de espantalho.

Era daltônico o anjo que o coseu,
e se era anjo, senhores, não se sabe,
que muita coisa a um anjo se assemelha.

Esses trapos azuis, olhai, sou eu.
Se vós não os vedes, culpa não me cabe
de andar vestido em túnica vermelha.

 

(Do “Livro de Sonetos” – 1949)

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“Anjo Daltônico”. Jorge de Lima e o mapa da geografia de sua infância 

“Anjo Daltônico” é um dos célebres sonetos de Jorge de Lima, no qual o poeta palmarino, logo na primeira estrofe, se “denuncia”, citando suas também célebres memórias da infância, na “Madalena”, como ele preferia se referir a União dos Palmares.

Não há outro tema, senão a infância, a costurar (embora A Túnica Inconsútil) e trespassar toda a monumental obra poética e prosaica de Jorge de Lima, desde “O Acendedor de Lampiões, datado de sua adolescência, quando, no Ginásio Diocesano, dos Irmãos Maristas, em Maceió, ele bebia dos literatos o formalismo parnasiano, junto com as águas do seu Rio Mundaú.

Estão aí, no “Anjo Daltônico”, citações de detalhes que só aos palmarinos ou aos mais afeiçoados à terra, são mais do que íntimos: “o tempo esfumado” sobre a Vila da Madalena e o Rio Mundaú, o cemitério da vila (“tumba e cal”).

Na descrição lírica, o poeta, – da parte anterior do sobrado da sua casa, no Largo da Matriz da (Santa Maria) Madalena, de onde ele avista a “Serra da Barriga Negra”, – traça o mapa de suas proximidades urbanas: o rio, mais abaixo, e o cemitério, à esquerda.

Só após a introdução poético-geográfica, feita na “cinza do borralho”, em que se denuncia na infância, é que o poeta descobre, no espelho, a face que sumiu (não há mais infância).

O poeta-jogador então põe na mesa as cartas do baralho, e o rei é ele mesmo, vestido de azul (“um manto de espantalho), quando devia estar vestido de vermelho. O engano é do Anjo Daltônico, que coseu o manto do rei, confundindo as cores.

“Anjo Daltônico” é o soneto do poeta que recorda, melancólico, a infância, que lamenta ter perdido. Quando ele cresce, até o “Anjo” (figura religiosa-surrealista, como Mira-Celi, que ele traz para sua poesia) se embaralha na composição de suas vestes de adulto.                                                                    Iremar Marinho 

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