HISTÓRIA. Mito e realidade: Tiradentes não tinha barba

Tiradentes só começou a ser cultuado como herói nacional a partir de 1890, ou seja, 98 anos depois de sua morte. Sua imagem de mártir e patrono da nação brasileira foi construída pelos republicanos, que precisavam de um símbolo que representasse a luta pela ruptura definitiva com o poder português
Óleo de Washt Rodrigues/Museu Histórico Nacional. Foto: Divulgação

Luciana de Souza Bento*

Para começar, esqueça a figura de Tiradentes com cabelos e barbas compridas. Essa imagem foi imposta por decreto pelos militares, para que ele ficasse parecido com Jesus. Joaquim José da Silva Xavier era militar e, como se sabe, cabelos compridos nunca foram tolerados nas Forças Armadas. Mesmo depois de capturado e condenado à forca, teve seus cabelos e barbas raspados por questões de higiene.

Na verdade, Tiradentes só começou a ser cultuado como herói nacional a partir de 1890, ou seja, 98 anos depois de sua morte. Sua imagem de mártir e patrono da nação brasileira foi construída pelos republicanos, que precisavam de um símbolo que representasse a luta pela ruptura definitiva com o poder português.

Mas não há como falar sobre Tiradentes sem entender o que foi a Inconfidência Mineira. Esse termo, aliás, tem sido rejeitado por muitos historiadores, já que inconfidência quer dizer traição, deslealdade, infidelidade. “O termo correto é ‘conjuração’, já que o que ocorreu em Minas Gerais foi o primeiro ato organizado para conquistar a independência do Brasil. Se eles foram traidores, foram segundo a ótica das autoridades coloniais. Como brasileiros não podemos continuar a explicar nossa história de acordo com a perspectiva dos europeus”, escrevem no prefácio do livro Um Sonho de Liberdade – a Conjuração de Minas, os autores Rubim Santos Leão de Aquino, Marco Antônio Bueno Bello e Gilson Magalhães.

Vinho e Constituição americana

A conjuração está situada no período de decadência do ciclo do ouro. Como a produção caiu vertiginosamente, a Coroa aumentou a repressão ao contrabando de ouro e diamantes e começou a pressionar os donos das minas a pagar os altos impostos devidos. Para ter uma ideia, em 1789 a elite colonial mineira devia 596 arrobas de ouro a Portugal, o equivalente a quase 9 toneladas.

Não foi à toa que grande parte dos endinheirados de Minas Gerais integrava as reuniões dos conjurados. Comerciantes, padres, intelectuais, coronéis, juízes e militares, toda a elite mineira estava rebelada contra a opressão portuguesa (ou, trocando em miúdos, os altos impostos cobrados).

No meio desses homens de posses havia um “durango”. Alferes do Exército, aprendiz de dentista e dono de quatro escravos, Joaquim José da Silva Xavier era o mais “ideológico” do grupo. Era o único a defender com firmeza a abolição da escravatura – o que era natural, já que os outros eram donos de dezenas e até centenas de escravos.

Entusiasmado com o Iluminismo francês e com a independência dos Estados Unidos, não era raro vê-lo, já sob o efeito de três ou quatro copos de vinho, recitando trechos da Constituição americana em voz alta para seus colegas nas tavernas de Vila Rica (hoje Ouro Preto). E falava sobre República, liberdade e independência do Brasil.

Enquanto isso a Coroa preparava-se para lançar mais uma derrama – imposto per capita a ser cobrado cada vez que a cota anual de ouro não era atingida. A maioria dos conjurados devia grandes somas à Coroa, muitos eram contrabandistas e sonegavam parte do ouro que extraíam. Para livrar-se da cobrança, o grupo planejou a revolta nos mínimos detalhes. Mas não contaram com um porém: o governador (Visconde de Barbacena) suspendeu a derrama.

Com essa notícia, muitos conjurados perderam o ímpeto revolucionário, já que suas economias estavam a salvo. Várias “bandeiras” progressistas defendidas por eles, como a implantação de indústrias no Brasil, foram subitamente esquecidas. Um dos desestimulados foi o poeta Tomás Antônio Gonzaga, autor dos versos de Marília de Dirceu. Ele teria dito que, sem a derrama, “a ocasião para o levante perdeu-se…”

Segredo de polichinelo

Apenas os conspiradores acreditavam que seus planos fossem segredo. Não tinham nenhum sistema de segurança e as reuniões não eram frequentadas por gente muito confiável. Tiradentes pregava suas ideias nas tavernas para quem quisesse ouvir. Não foi difícil para o governador inteirar-se da conspiração em marcha. Quando Joaquim Silvério dos Reis denunciou seus companheiros, apenas deu os pormenores de uma trama que o governador já conhecia.

“É curioso notar como, de certa forma, todos os inconfidentes traíram a causa”, opina Bernardo Joffily, autor de um atlas de história do Brasil encartado na antiga revista Istoé Senhor. “Outros cinco conjurados foram condenados à forca. Todos entraram em pânico, imploraram perdão e se acusaram mutuamente e receberam a piedade da rainha.” Único a não mostrar arrependimento, Tiradentes foi enforcado e esquartejado, tendo suas partes expostas em diversas cidades da capitania. Além disso, sua casa foi demolida e o terreno salgado para que nada mais nascesse no lugar. Para ele, uma pena que lembrava os tempos da Inquisição. Para os outros, exílio nas então colônias portuguesas de Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e Angola.

Silvério dos Reis? Bem, além de ter revelado detalhes do plano de Conjuração também foi responsável pela descoberta do esconderijo de Tiradentes no Rio de Janeiro. Obteve como reconhecimento um belo pagamento da Coroa e foi enviado para o Maranhão com nome falso. Mesmo assim morreu queixando-se de nem sequer poder sair tranquilo às ruas com medo de assassinato. Serve de exemplo. Traidores podem ganhar no curto prazo, mas a história é cruel com eles.

*Publicado originalmente na edição de abril de 1999 da Revista dos Bancários 

Fonte: Rede Brasil Atual

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