Jorge de Lima
As pessoas de Mira-Celi
O avô tinha sido um ancião convencional,
que se enterrou de sobrecasaca, e polainas;
e a avó — uma menina pálida que morreu ao pari-la;
o pai fez algumas baladas; contam que tinha uma luneta para olhar ao longe.
Daí — a mão dobra a página do livro, e a história da tetraneta finda com uma estocada no ventre: há destinos travados, lenços quentes de lágrimas, algum incesto, uma violação sobre um sofá antigo.—
Quando a mão dobra a página, há rastros de sangue no soalho.
Esta é a mais nova das cinco. Veja que os seios são como neve que nós nunca vimos e ninguém nunca viu o pai que lhe fez um filho; e o filho desta menina é este moço de luto.
Agora vire a página e olhe o anjo que ele possuiu, veja esta mantilha sobre este ombro puro, e estes olhos que parecem contemplar as nuvens através da luneta avoenga. Veja que sem o fotógrafo querer as cortinas dão a impressão de caras impressionantes por detrás da gravura: um estudante de cavanhaque e outro de capa.
Repare bem o braço que ninguém sabe de onde circunda o busto da moça e a quer levar para um lugar esconso. Fixe bem o olhar com o ouvido à escuta para perceber a respiração grossa, os gritos, os juramentos… A saia negra parece um sino de luto, e o decote é a nau que a levou para sempre. E este fundo de água pode ser o mar muito bem; mas pode ser as lágrimas do fotógrafo.
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Jorge de Lima, mestre da poesia metafisica, não era um carola nem papa-hóstia
O médico e poeta alagoano Jorge de Lima (1893-1953) é dono de uma das obras mais profundas e, ao mesmo tempo, menos exploradas da poesia brasileira. Com um tom marcadamente enigmático e místico, seu texto exibe apurado rigor e requer leitura cautelosa.
Por causa dessa dificuldade, praticamente só se conhece o Jorge de Lima mais palatável, de poemas como “Essa Negra Fulô” e “G.W.B.R”, bem marcados pelo espírito do primeiro modernismo, nos anos 1920.
No entanto, na década seguinte, a partir do livro Tempo e Eternidade (1935), escrito em parceria com o mineiro Murilo Mendes, Jorge de Lima dá início a essa fase mais densa que define a maior parte de seu trabalho.
Católico — mas não carola, porque seu elevado nível de elaboração poética passa a quilômetros de um mero versejador papa-hóstia —, ele se torna um mestre da poesia metafísica.
“Álbum de Família” é o bloco 25 do longo poema “Anunciação e Encontro de Mira-Celi”, publicado no livro Obra Poética, em 1950. Ao folhear um álbum de retratos, encontra-se uma família cheia de mistérios, violências, incestos…
Na opinião do crítico e poeta Mário Faustino, se esse texto tivesse sido escrito originalmente numa língua mais divulgada, já seria o suficiente para inscrever Jorge de Lima entre os grandes poetas internacionais do século 20.
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O poema “O Grande Circo Místico”, de Jorge de Lima, inspirou o balé de mesmo nome, que tem música de Edu Lobo e Chico Buarque. (Carlos Machado)
O Grande Circo Místico é também um filme longa-metragem do cineasta alagoano Cacá Diégues, baseado no poema de 47 versos contido no livro A Túnica Inconsútil (1938), de Jorge de Lima. O roteiro foi escrito por George Moura com colaboração de Cacá Diegues e produção de Renata Almeida Magalhães. Concorreu ao Oscar de filme estrangeiro e participou do Festival de Cannes. (I.M.)