MANIFESTO SURURU *

Edson Bezerra: “De todo modo, mestiços de índios, negros e brancos, estamos vivos”.

Os canais sempre foram as nossas pontes e disto já o sabia Octavio Brandão

Edson Bezerra **

O Manifesto Sururu quer muito pouco. Quem sabe um pouco mais do que exercitar um certo olhar: um olhar atento por sobre as coisas alagoanas. O Manifesto Sururu não quer apostar e nem pousar em outras imagens. O que ele procura é exercitar olhos e sentidos por sobre (e dentre) antigas e permanentes imagens das coisas alagoanas: olhar primeiramente os canais que interligam as lagoas e os rios. Os canais sempre foram as nossas pontes4 e disto já o sabia Octavio Brandão.

O Manifesto Sururu também fala da fome. Não da fome comum, mas da fome de devorar as Alagoas.

Contra as derrapagens de uma modernidade vazia6, uma outra assinalada de coisas alagoanas.

Novas rotas. Rotas alagoanas: de canais e lagoas, sobretudo.

O Manifesto Sururu não está sozinho. O sururu, ele mesmo é o alimento e a caloria de milhares de vidas. O sururu é vida.

O sururu, ele mesmo é o alimento e a caloria de milhares de vidas. O sururu é vida.

O Manifesto sururu está atento aos batuques noturnos dos terreiros periféricos8 fora de rota e também dos milhares de capoeiras espalhados.

O Manifesto Sururu se alegra com a folia dos meninos de rua, com os guerreiros e com as tradições alimentadas pelos povos periféricos.

Manifesto Sururu: mistura e associação de moluscos, peixes, águas, negros, cafuzos, morenos e de todas as mestiçagens possíveis das gentes alagoanas.

Manifesto Sururu: do vale do Mundaú10 para onde houver lagoas.

Suas heranças são imagens, suas comidas e seus pais ancestrais. Assim: Calabar é nosso e, sobretudo, Zumbi dos Palmares: migrantes deslocados da colônia central.

Penso em imagens alagoanas: o olhar a cidade de nossos mirantes. Os mirantes são os nossos planetários. Dos mirantes se avista a lagoa, o céu e o mar. Dos mirantes: ali poderíamos comer além de tapioca e beiju, outras coisas das tribos ancestrais.

Penso em imagens alagoanas. Penso que uma delas é a Mestra Ilda do Coco tomando (no mínimo) caldinho de sururu na beira da Mundaú.

Penso em uma outra: a do Major Bonifácio melado de lama e dançando carnaval na rota Bebedouro-Martírios. Ele, o major, bem que poderia ter também dançado capoeira.

Uma outra seria pensar a Tia Marcelina como se ela fosse Nossa Senhora dos Prazeres.

No fundo somos gente-sururu e por isso trazemos nos olhos as imagens de todas as águas.

Das águas do mar e do somatório das dezenas de lagoas, rios e olhos d’água espalhados nas periferias da cidade.

Octávio Brandão: Mundaú: rio dos negros. São Francisco: rio dos brancos. Que vivam as lagoas todas: as vivas e as mortas. Somos filhos do barro, nascemos entre os batuques dos negros e da mistura da lama.

Por isso: que estória é essa de Terra dos Marechais?

Somos ainda a derradeira sobrevivência (e isso é fantástico) do extermínio do povo Caeté. Em nossa veia, além do povo caeté, pulsa sangue negro. Os brancos nos trouxeram a mistura e (também) a morte.

De todo modo, mestiços de índios, negros e brancos, estamos vivos.

Cúmplices da modernidade, temos o barro e a lama debaixo dos edifícios e dos asfaltos das ruas.

Somos filhos de uma cidade restinga.

Os nossos edifícios (assim como a nossa modernidade) foram construídos sobre os terreiros dos negros e das moradas dos pobres.

A nossa modernidade foi construída sobre os aterros dos manguezais e do massapé e é por isso que às vezes ainda sentimos cócegas nos pés: são eles, os caranguejos e as lamas.

Sobre os aterros, se instalaram os movimentos dos negros, seus batuques e danças. Guardamos então muitas saudades.

Por uma nova cartografia: redesenhar roteiros visíveis, remarcar datas e re-escrever novas geografias.

Manifesto Sururu: Simulações sem simulacros.

Que por dentre as cenas das antenas parabólicas, outras cenas de imagens periféricas. Por uma reinvenção da cidade e celebração pública da memória dos nossos proscritos. E por falar nisso:

Viva Calabar!!!!

Além de toda ancestralidade, o erotismo do coco e dos fragmentos de nossas raízes periféricas.

Os nossos terreiros são nossas academias: sementes de ritos e lugares de celebrações e festas. Viva todas as alegrias. Viva o terreiro de Mestre Felix e de todos os mestres.

Saudades daqueles tempos. Antes do Quebra de 1912 o batuque era bem maior. Temos muitas dívidas: para com a morte de Tia Marcelina, por exemplo.

E temos muitas outras. Uma delas é a seguinte: a Praça 13 de Maio deveria ficar na praça dos Martírios e a estátua do negro Zumbi no lugar da Marechal. Faríamos assim muitas festas e celebraríamos com os batuques o sincretismo de nossas mestiçagens. Quem sabe então ele, Zumbi, não rezaria uma missa pra depois dançar xangô?

Nós repudiamos o etnocídio e proclamamos todos a uma grande alegria.

Viva a alegria de todas as festas. Quem antecedeu os marechais foi Zumbi e antes dele, Calabar. Viva a subversão e a liberdade.

Entre os nossos pobres, os pobres específicos, aqueles que sobreviveram a maleita e a fome estiveram desde sempre os cantadores de coco, de toada, de forró, das rodas de samba, os repentistas, os criadores do martelo alagoano, os capoeiras, os macumbeiros e mandingueiros. Em suma: as nossas almas inspiradoras.

Das lagoas. Também elas invadiram e invadem o mundo das imagens: de Guilherme Roggato a Celso Brandão. As palavras-mundo de Jorge de Lima e Lêdo Ivo são roteiros cinematográficos de um imaginário alagoano.

Do somatório de todas as águas: as águas do mar que invadiram a todos.

Dos olhos- d’água e do cheiro de maresia contra o cheiro agridoce das canas. Maresia alagoana: ela contaminou a todos: dos pisantes das terras alagoanas, dos índios e negros, brancos e holandeses e até mesmo aos piratas franceses.

…e sobretudo do cheiro do sururu tirado fresquinho da lama: alimento dos negros e pobres. Imagem segura e maternidade de nossas imagens mães. Assim, Mestra Ilda também é Zumbi e Mestre Zumba também.

Além de sentimentais, somos anfíbios, quer se queira quer não.

Quem ainda não provou do sururu, tomou banho de lagoa, é aleijado dos olhos e cego no corpo.

Viva Deodato, outro negro artista.

Sururu: ao redor dele, os bairros e os povoados se amontoaram e se enredaram: Ponta Grossa, Levada, Pontal, Bebedouro e Rio Novo. Todos filhos das águas.

O sururu então, mais dos que os homens, inventou e recriou as nossas geografias: as cartografias de nossa primitividade. Ali naqueles espaços embrenhados dançava-se macumba, fumava-se liamba, cantava-se o coco e se recriava um mundo: o mundo alagoano. Como isto foi possível?

Na busca do sururu, os homens pobres desenharam ruas.

Sururu: espaços coletivos, maternidade e memória. Nascedouro e rotas de outros espaços geográficos. Espaços de uma memória possível.

Viva Jorge de Lima e Celso Brandão que filmou o “Cata Sururu”.

Levada. Alguém lembra que ali havia um porto?

Alagoas não foi feita (somente) pra turista ver.

Pra turista ver e olhar o mar.

No além-mar, pensar não outras terras. No além-mar pensar nossos interiores. Lagoas interiorizadas. Pra turista ver também. E que ele venha, e já que comemos o bispo Sardinha, o comeremos também, mas antes disso ensinar ele a tomar banho de lagoa e comer caranguejo uçá com as mãos. Aliás, com todo estrangeiro deveria ser assim.

Turismo primitivo: a Bica da Pedra, o banho no Cardoso, o Catolé. Lugares de luz com águas frescas e claras.

O bar das Ostras.

Os portos de Bebedouro e de Santa Luzia do Norte, alguém lembra?

“Sururulândia”: Esta é nossa riqueza e desde sempre memória.

Mas aconteceu que Maceió fugiu da Mundaú. Pensou que a lama e os caranguejos e os homens-caranguejos iam engolir ela!!!!

A nossa aristocracia, com medo e nojo fugiu do barro, e fugiriam também da zoadas dos batuques, dos cocos e das macumbas e foram morar lá na banda das praias: Pajuçara, Ponta Verde e Jatiúca. E naquelas praias, há pouco desertas, no lugar dos casebres e casas de paus a pique, foram montados os edifícios e as luminárias elegantes da cidade. E as águas do mar são diferentes das águas da lagoa.

A gente sururu então ficou sozinha.

Formou-se deste então duas gentes: a gente sururu e o povo rico da cana.

De um certo modo, ao gosto do sururu, se somou o cheiro da cana. Alagoas então é de todo um pouco de cada pedaço.

Mas, ao contrário da maternidade dos mariscos, os capins da cana se tornaram baionetas retocadas de sangue.

Na verdade, a cana nunca foi doce. Zumbi e os negros já desde sempre sabiam.

O sururu também não é doce. Mas entre o doce e o salgado, e somado às mestiçagens das cantigas e do somatório das estórias todas, ele foi dando alma e corpo às gentes alagoanas.

Por isso, é uma pena que o Farol não derrame sua luz na Mundaú.

O Farol nunca iluminou as lagoas. Nas lagoas não navegam os navios. Mas, afinal o que trazem os navios? Nas lagoas apenas navegam os peixes, os homens e os mariscos adormecidos e preguiçosos: o bagre, o mandim, o siri, o caranguejo e o sururu enfiado na lama.

Mas, afinal, se toda festa tem um tempo, qual o tempo sururu?

Sururu, cultura oral sururu. Sinestesias: pureza aberta e sem perigo.

Sinestesias: um dia um branco tomou caldo de sururu e ficou doido.

Sururu: comida dos pobres: “Nossa miséria é a nossa riqueza”.

Que ressuscitemos todas as histórias

E que no banquete das mestiçagens periféricas

E na festa de todos os povos ressurgentes

Morram colonizadores e colonizados.

E que por dentre o barro e cheiro da lama

E no somatório de todas as imagens, a Mundaú central,

E nela a gente sururu seja imensa

Feito um oceano sem margens.

No somatório de todas as águas.

  • Publicado, originalmente, no semanário Extra – Alagoas

 ** É músico, compositor, poeta e articulador cultural, graduado em Sociologia, mestre em Antropologia, doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco e professor universitário.

 

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