“É doce recordar União dos Palmares, do tempo em que a cidade parecia até mais humana, porque refletida nestes seus personagens simples, mas carregados de humanidade.”
IREMAR MARINHO
União dos Palmares relaciona, ao lado de seus grandes vultos, figuras não menos expressivas até mesmo em sua pequenez que, se não constituem cabedais de cultura, também não transitam anonimamente no cenário da vida social palmarina. São personagens caracterizados pela boa conversa ou pelo folclore que as transforma em protagonistas de feitos, ora dignificantes, ora resultantes de pura fanfarronice.
Uma característica destas figuras que, julgo, são encontradiças em qualquer comunidade, é a simplicidade, a partir de sua situação na classe social baixa. Mesmo assim (e por isto mesmo), pouco se sabe de suas origens e a maioria é conhecida apenas pelos seus apelidos, não raro curiosos. A mitologia popular se encarrega até mesmo de emprestar a alguns destes personagens palmarinos foros de nobreza, mas são mesmo gente do povo, a mourejar em biscates ou sobrevivendo de favores das classes mais abastadas. Ora são gente de recados, empregados domésticos ou trabalhadores autônomos, mas detentores de um quê inexplicável a lhes emprestar fama e há os que chegam a ultrapassar fronteiras, destacando-se até no futebol estadual.
Quem não conhece, na terra de Zumbi, personagens como o jogador de futebol e talhador Manica? O que foi feito de Manica? Quem não conhece Rata Capada, Biu Zuleika, Trepa na Parede, Clavinote, Orlando Gay e Doce Veneno? É evidente que a população mais nova pouco ouve falar deles, mas é só pedir algum esclarecimento aos mais velhos (nem tão velhos assim), que vai encontrar ricas referências a estes personagens que povoaram a terra quilombola, pelo menos nos últimos 50 anos.
Dona Eru, por exemplo, ninguém que tenha estudado no Santa Maria Madalena desconhece essa figura de velha branca, pequena e encarquilhada, que possuía uma birosca (e morava nela) situada em frente ao colégio e ao lado do grupo escolar Jorge de Lima. Dona Eru vendia do fósforo à cachaça e seu boteco era ponto de referência, nos dias de feira, pois era lá muitos feirantes dos sítios deixavam seus cavalos amarrados. A velha, da qual ninguém sabia a origem ou conhecia qualquer familiar seu, era sempre motivo de chacota dos estudantes e da molecada e reagia com pedradas, cabos de vassoura e descomposturas. Na Semana Santa, sua casa era ponto obrigatório das brincadeiras de serra-velho.
Não menos notórios são Messias Doido, Grita Pai, Alzira Fobrêmia e Dona Anja (curandeira). Eu mesmo acho que estou esquecendo alguns, talvez até tão expressivos quanto estes, e os leitores de O Relâmpago devem se lembrar de outros personagens que ampliem esta relação. Messias Doido, fanático pelas histórias de heróis do faroeste, pontificava na calçada do Cine Imperatriz, “encenando”, com murros no ar e os dedos em forma de revólver, os filmes de caubóis que ele chamava de Randon Chicote, Roy Roge, João Eine, Joel Maquicréa. Filmes de Tarzan, com destaque para as peripécias da macaca Chita, ganhavam colorido especial nos delírios cinéfilos de Messias, que encantavam a garotada, enquanto a sessões não começavam. Uma vez, vi Messias, na feira de sábado, após receber o pagamento por um carrego, separar o dinheiro, dizendo “esse aqui é sagrado, é do ingresso do filme de hoje”.
Grita Pai morava no começo da Rua do Jatobá. Entre uma cachaça e outra, era carregador e servente de pedreiro. Preso por suspeita de roubo, conta-se a história comovente de sua filha, criança que, ao vê-lo espancado na rua, pela polícia, apelava que gritasse, para não apanhar mais. Daí o apelido. Grita Pai morreu mesmo de uma surra, na cadeia, provavelmente sem gritar, como pedira a filha.
Trepa na Parede chegou a ser motorista de táxi e de caminhão, em Maceió. Morreu soterrado num desabamento de barreira sobre a caçamba que dirigia e carregava barro, em Cruz das Almas.
Alzira, olhos verdes vesgos, muito velha e torta, queria esmolas só em dinheiro e afirmava sempre (e nem precisava) que sua vida era uma “fobrêmia”. Dizia-se dela que fora amante de fazendeiros e desembargadores.
Orlando, gay assumido, no tempo em que as pernas ajudavam, era comum vê-lo em desabalada, nas ladeiras do centro da cidade, em performances de fazer inveja a João do Pulo.
É doce recordar União dos Palmares, do tempo em que a cidade parecia até mais humana, porque refletida nestes seus personagens simples, mas carregados de humanidade.
- Publicado, originalmente, no jornal O Relâmpago, editado por Genisete de Lucena Sarmento e Olívia de Cássia Cerqueira