Na América Latina, 2021 indica início da derrota do conservadorismo no poder

Analistas avaliam que próximos processos eleitorais serão decisivos para pensar integração regional
Revolta popular no Chile abriu caminho para convenção constitucional e eleição de Gabriel Boric - Ivan Alvarado / Reuters

Michele de Mello

Brasil de Fato/São Paulo

Revolta popular no Chile abriu caminho para convenção constitucional e eleição de Gabriel Boric – Ivan Alvarado / Reuters

O ano de 2021 se encerra com uma nova configuração de forças políticas na América Latina e Caribe. A terceira década do milênio inicia com uma maioria de governos progressistas na região, rememorando o início dos anos 2000, considerado por alguns como a “década ganha”.

Se em janeiro a balança pesava para o conservadorismo, com governos que defendiam uma agenda liberal na economia e uma política contrária às demandas populares, agora em dezembro somam-se ao menos 14 governos afins ao campo da esquerda latino-americana e caribenha.

Alguns eventos decisivos foram: no Chile, a conformação da Convenção Constitucional, com base na paridade de gênero, e presidida pela líder mapuche Elisa Loncon, e a eleição de Gabriel Boric, derrotando a extrema direita; no Peru, a eleição de Pedro Castillo; e, em Honduras, a vitória de Xiomara Castro, derrotando os partidos de direita após 12 anos do golpe de Estado.

Também vale destacar a permanência no poder de Daniel Ortega, na Nicarágua, e a vitória do chavismo nas regionais da Venezuela.

“Acredito que a ideia de uma nova década ganha é mais uma expressão de vontade que uma realidade. Mas 2022 deve ser um ano divisor de águas. Tivemos um 2021 que ofereceu alguns resultados imprevistos e outros nem tanto. Isso demonstra que não há uma hegemonia de direita na região, ao contrário, há memória dos povos inclusive contra projetos retrógrados”, comenta o jornalista e pesquisador do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (Celag), Yair Cybel.

Para o dirigente do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stedile, entre 2000 e 2014, houve uma disputa permanente de três projetos: um projeto neoliberal, coordenado pelos Estados Unidos; o projeto neodesenvolvimentista, antineoliberal mas que não confrontava os EUA e representava uma aliança de governos populares com a burguesia local; e, por fim, o projeto da Alba-TCP, anti-imperialista e que representava a unidade de governos e movimentos populares.

:: “O capitalismo é a principal ameaça contra a humanidade”, diz secretário da Alba-TCP ::

“A crise do modo de produção capitalista provocou uma crise nesses três projetos e, por isso, nenhum consegue ser hegemônico no continente e o espaço de disputa continua sendo o eleitoral”, defende Stedile.

A economista mexicana e membra da Rede de Intelectuais em Defesa da Humanidade, Ana Esther Ceceña também estabelece outras diferenças nos dois períodos do progressismo latino-americano.

“Sem tirar importância aos processos atuais, mas eles não têm o mesmo tom, propósito tão claro ou possibilidade de articulação tão explícita. O que foi interessante naquele momento é que havia uma liderança e um projeto compartilhado por todos aqueles que se incorporavam a essa onda progressista latino-americana. A presença de Chávez fez a diferença. Era um homem que não simulava, realmente apostava; não pretendia, construía. E isso permitiu que o chamado progressismo tivesse um sentido”, analisa.

“Ele nos deu esperança”: em data de aniversário, venezuelanos refletem sobre Chávez e revolução

Ceceña defende que essa confluência entre governos progressistas e movimentos populares teve seu momento de máxima expressão com a derrota da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) – proposta de 2005 dos Estados Unidos para a região – que abriu o caminho para a criação da Alba-TCP e da Alba Movimentos.

Socialismo ou barbárie?

No Chile, Peru e Bolívia os processos eleitorais foram definidos entre polos totalmente opostos. Para os analistas essa polarização entre esquerda e extrema-direita é um reflexo da situação de crise do sistema capitalista.

A expectativa da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) é de crescimento de 5,9% na região, mas ainda em um cenário de riqueza concentrada. O subcontinente latino-americano é a terceira região mais desigual do planeta; somente no Brasil, os 10% mais ricos ganham 29 vezes mais que os 50% mais pobres.

Saiba mais: Pesquisa revela que 10% da população possui 75% da riqueza mundial

“A concentração de capital não oferece alternativa. Aquela ideia de mercados internos que permitiam absorver as crises já não existe. Devemos voltar a pensar a relação humana com a Terra. E isso não é algo romântico ou algo do passado. É a única maneira de ver um futuro possível, já que a outra opção é a ruína. Estamos numa espiral destrutiva: pelas pandemias, pelas armas, o tráfico de pessoas, todos os negócios atuais do capitalismo são absolutamente corrosivos para a sociedade”, defende Ana Esther Ceceña.

João Pedro Stedile defende que as respostas às contradições geradas pela luta de classes no continente virão a partir da elaboração de um projeto popular, autônomo e que vise a superação do capitalismo.

“Temos que acumular forças em torno de programas de mudanças estruturais. O capitalismo já provou que não é a solução dos problemas das massas. O programa não é apenas uma questão teórica, ele é necessariamente um exercício de pedagogia de massas, no qual as massas devem assimilar quais propostas são necessárias para mudar o país”, afirma o membro do MST.

As conquistas da direita

Por outro lado, ainda podemos ver manifestações da presença de centros de poder conectados a um projeto conservador e neoliberal.

No Equador, a eleição do banqueiro Guillermo Lasso como presidente; na Argentina, o empate nas eleições legislativas, que significou a perda da maioria do Senado pelo peronismo para o macrismo e o crescimento de figuras de extrema-direita.

Além disso, ganharam corpo plataformas internacionais, como o Fórum de Madri, estimulado pelo partido espanhol de ultra-direitista Vox; o Projeto Veritas, idealizado pelo ex-estrategista da campanha de Donald Trump, Steve Bannon; ou eventos como a Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC – siglas em inglês), que teve sua edição brasileira realizada em setembro, organizada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL).

Isso demonstra que a extrema direita continua a se articular e ainda é um relevante adversário político em vários países.

Leia também: Atacar sistema eleitoral é tática comum para minar confiança nas democracias e gerar caos

“Hoje há uma estratégia continental de projeto de poder dos Estados Unidos, que necessita da região para disputar a hegemonia de poder com a China, por exemplo. É uma estratégia muito clara e muito agressiva contra a América Latina”, comenta a professora da Universidade Autônoma do México (UNAM).

Perspectivas para 2022

Diante desse cenário, as próximas eleições gerais na Colômbia, em maio de 2022, e no Brasil, em outubro, são consideradas chave para determinar a capacidade dos governos e povos da América Latina e Caribe voltarem a atuar em bloco nos organismos multilaterais e no desenvolvimento de políticas sócioeconômicas integradas.

Nos dois países, os candidatos do campo progressista têm ampla vantagem sobre seus adversários. O senador Gustavo Petro, do movimento Colômbia Humana, possui cerca de 42% da preferência, segundo pesquisas divulgadas em dezembro pela empresa Invamer.

Os dois meses de greve geral na Colômbia, na primeira metade do ano, contribuíram para a aumentar o rechaço da sociedade colombiana aos partidos tradicionais de direita e ao uribismo – corrente política que governou o país nos últimos 20 anos.

:: Relembre cobertura completa: Greve Geral na Colômbia ::

No Brasil, Lula da Silva também lidera todas as pesquisas de intenção de voto, com 15 a 20 pontos de vantagem sobre o atual presidente Jair Bolsonaro.

A proposta de fortalecer a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), como alternativa à Organização dos Estados Americanos (OEA), e o fortalecimento do Mercosul poderiam ser dois reflexos institucionais da política exterior desses possíveis novos governos.

“O ano de 2022 pode augurar uma mudança de ciclo com o alinhamento das quatro maiores economias da região: Brasil, Colômbia, México e Argentina e, ao mesmo tempo, pode mostrar que nem todas as propostas de mobilização de rua tem uma resposta com avanços de direitos no aspecto partidário-institucional”, comenta Cybel.

Leia também: Na Comuna El Maizal, 4,5 mil famílias constroem projeto socialista para Venezuela

Para o dirigente do MST, as forças populares possuem desafios permanentes de formação, militância política e batalha ideológica.

“A esquerda precisa ter mais clareza de como deve fazer a disputa política na sociedade, que não é apenas ganhar governos, mas disputar o Estado ampliado, como dizia Gramsci – que é a organização da produção, e estruturas como a mídia, o judiciário. É só isso que irá garantir que além das vitórias eleitorais acumulemos forças”, afirma João Pedro Stédile.

Se os movimentos populares conseguirem articular-se em plataformas continentais, há maior possibilidade de ampliação de direitos, analisa Yair Cybel.

“O que será interessante de observar em 2022 será ver o que acontece com os processos de levante popular que não terminam numa institucionalização da oposição”, comenta o jornalista argentino.

Share on facebook
Share on twitter
Share on whatsapp