Jorge de Lima *
O médico de câmara da imperatriz Teresa – Frederico Knieps –
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun – a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro,
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo – o trapezista Ludwig – nunca mais a pôde amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela o desejo dele.
Então, o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado;
são as suas levitações que a plateia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças creem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helène se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os membros
que parece que os membros não são delas.
A plateia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helène se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram a alma para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do grande circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa.
(A Túnica Inconsútil – 1938)
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* Jorge de Lima (União dos Palmares, 23 de abril de 1893 — Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1953) foi político, médico, poeta, romancista, biógrafo, ensaísta, tradutor e pintor. Viria a se consagrar como autor de um vasto poema em 10 cantos com uma diversidade enorme de formas, ritmos e intertextos – Invenção de Orfeu (1952).