No dia 4 de março de 1989, estreou no Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou, na Burkina Faso até pouco antes governada pelo revolucionário Thomas Sankara, o celebrado documentário Ori, dirigido por Raquel Gerber e narrado e roteirizado pela historiadora Beatriz Nascimento. Ori marcou época: retrata as lutas do movimento negro no Brasil de 1977 a 1988, explicita suas conexões transatlânticas com a África, e desenvolve a concepção que conferiu reconhecimento aos trabalhos da historiadora – a do quilombo, em sua multiplicidade de acepções, como fio condutor da luta negra ao longo da história.
Com o capricho de preparação que já é marca da Ubu Editora, chega às prateleiras das livrarias neste mês O negro visto por ele mesmo – ensaios, entrevista e prosa, coletânea de escritos de Beatriz Nascimento organizada pelo antropólogo e professor da UFG Alex Ratts. Com diversos textos inéditos, o novo volume vem para ampliar e aprofundar a proximidade do público com a obra da historiadora sergipana, para muito além de Ori.
Os textos reunidos no livro foram escritos entre 1974 e 1994, abarcando a quase totalidade da vida intelectual de Beatriz Nascimento. Sua primeira subdivisão, concentrada nos ensaios, abarca textos historiográficos – próprios de sua profissão –, mas também reflexões sobre comunicação e mídia, que começavam a entrar em seus interesses, desembocando em seu documentário. Em dos textos mais instigantes, “A senzala vista da casa grande”, a autora promove uma análise crítica de Xica da Silva (1976), filme do alagoano Cacá Diegues, desnudando problemáticas de sua concepção racial. Em outro, inédito, analisa as representações de raça em outro clássico da cultura nacional – desta vez, Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. No total, seis dos onze ensaios presentes são inéditos.
Na segunda parte do livro, dedicada às entrevistas, encontram-se diálogos com nomes como Caco Barcellos – ainda para o jornal símbolo da imprensa alternativa que combatia a ditadura militar, o Movimento –, Raquel Gerber, que dirigiu seu Ori, e Jônatas Conceição, um dos líderes do Ilê Aiyê (neste caso, para o nascente Jornal do MNU). Lidas em conjunto, as entrevistas capturam o movimento do pensamento de Beatriz, e por meio delas é possível perceber o desenvolvimento de suas pesquisas sobre o quilombo. A última, dada na marcha do movimento negro carioca ao monumento a Zumbi dos Palmares no centenário da (falsa) abolição, em 1988, era inédita em texto.
Por fim, encontram-se na coletânea textos em prosa de Beatriz Nascimento, talvez o aspecto menos conhecido de sua produção escrita. As entradas vão do gênero memorialístico ao poético, deslocando-se temporal e geograficamente do Rio de Janeiro da infância da autora ao Quilombo dos Palmares do século XVII, de Portugal dos anos 80 à Angola revolucionária do MPLA.
Beatriz esteve conosco até 1995, quando foi assassinada pelo companheiro de uma amiga. A historiadora a aconselhava há algum tempo a cortar relações com o homem, denunciado por violência doméstica. Nos 52 anos em que viveu, deixou como legado Ori, sua obra magna, mas também inúmeros artigos sobre temas como negritude, quilombos, democracia racial, e as questões específicas da mulher negra – em sua maioria reunidos no livro Uma história feita por mãos negras (aliás, também organizado por Alex Ratts).
“Afro Estandarte”, pintura de Abdias do Nascimento, ilustra a capa deste lançamento da Ubu Editora. A edição, como um todo, é multicolorida, belíssima – e se completa com posfácios do pesquisador Muniz Sodré e de Bethania Nascimento Freitas Gomes, filha da historiadora sergipana. A força e altivez do quadro de Abdias espelham as de Beatriz, cuja memória e lutas ficam mais vivas nos dias de hoje com esta reedição de vários de seus textos.