Cristiane Sampaio
Brasil de Fato | Brasília (DF)
Com a promulgação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) PEC 11/22 pela mesa do Congresso na noite de quinta-feira (14), chegou ao fim a disputa legislativa que envolve o piso salarial da enfermagem.
A saga em torno do tema teve início ainda no final dos anos 1980, quando o primeiro projeto começou a tramitar no Legislativo, por isso a promulgação do texto teve sabor de vitória para a categoria, que anteriormente conseguiu aprovar também o Projeto de Lei 2564/20. Este último fixa detalhes sobre os valores salariais mínimos a serem pagos a enfermeiros, parteiras, auxiliares e técnicos de enfermagem.
O PL 2564 e a PEC 11 tiveram, ao todo, um rito de pouco mais de dois anos no Congresso. “A gente avalia que é algo excepcional, inédito e demonstra o interesse em atender nossa demanda, porque aprovar um PL e uma PEC em curto espaço de tempo é algo inimaginável. Foi uma vitória muito grande”, celebra Daniel Menezes de Souza, membro do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen).
Percurso
O PL 2564, que começou a tramitar em maio de 2020 pelas mãos do senador Fabiano Contarato (PT-ES), ganhou fôlego no decorrer da pandemia e encontra na proposta de emenda um resguardo jurídico. Como a atual versão da Constituição Federal não trata da instituição do piso por parte do Legislativo, a PEC 11 insere essa previsão na Carta Magna, a partir da indicação de que uma lei federal deverá estipular os valores salariais do segmento.
A confecção da PEC veio após intenso debate sobre como garantir a sustentação jurídica do projeto de forma a evitar questionamentos futuros de eventuais opositores junto ao Judiciário. A ideia era impedir que uma histórica luta trabalhista tombasse ao final da jornada, a mando do Supremo Tribunal Federal (STF).
Diante disso, a solução foi cunhar a PEC 11, cuja lista de signatários é encabeçada pela senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA). No percurso legislativo que envolveu o tema, a pauta teve o seu primeiro projeto ainda em 1989, com o PL 4499, que previa apenas o piso dos enfermeiros.
Vinte anos depois surge o PL 4924/2009, cujo texto incluía parteiras, auxiliares e técnicos de enfermagem. Na sequência, o mesmo conteúdo veio à tona por meio do PL 459, de 2015, mas nenhum dos três projetos obteve o apoio necessário para chegar ao final da tramitação.
Com a crise sanitária gerada pelo alastramento da covid-19 e as jornadas extenuantes de profissionais de saúde durante os momentos mais críticos do período, o tema ganhou evidência política e ressurgiu por meio do PL de Fabiano Contarato.
“Eu vi – ninguém me contou não – profissionais de enfermagem vestidos com capa de chuva porque não tinha equipamento. Perdi amigas, por exemplo. Eles todos foram guerreiros demais”, disse ao Brasil de Fato, em um momento de forte emoção, a deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), que é enfermeira de formação e esteve entre os parlamentares mais atuantes em prol do piso.
De 2020 para cá, a jornada vitoriosa do PL e da PEC foi curta, considerando os padrões do Congresso para esse tipo de medida. Ao longo das costuras políticas, os dois textos acabaram conquistando ampla maioria nas duas casas legislativas, impulsionados pela mobilização social em torno do tema. “Ficamos impressionados inclusive com a maturidade política das entidades deles”, realça Alice.
No plenário da Câmara, por exemplo, a PEC foi aprovada no último dia 13, em segundo turno, por 473 votos favoráveis e apenas nove contrários. No Senado, no início de junho, a margem foi ainda mais vantajosa para os defensores da proposta: foram 71 votos favoráveis e nenhum contra no primeiro turno, enquanto no segundo foram registrados 72 apoios e nenhuma rejeição.
“É aquilo que Victor Hugo disse: ‘Não há nada mais poderoso do que uma ideia quando o seu tempo chega’, e foi justamente em plena pandemia. Precisou haver uma crise sanitária que vitimou 674 mil brasileiros para que nós pudéssemos jogar luz para essa categoria”, desabafou Contarato.
Mas nem tudo foram flores durante a tramitação da proposta. A oposição à pauta, embora matematicamente minoritária, ficou por conta do partido Novo e de setores do empresariado, que se disseram preocupados com os gastos, especialmente de governos municipais e estaduais. O tema foi alvo de um grupo de trabalho (GT) que discutiu o tema na Câmara.
“O relatório foi decisivo porque ele reduziu um verdadeiro caos que era pintado de mais de R$ 40 bilhões de gastos e depois, mais tarde, falaram em R$ 15 bilhões. Mas nós provamos que o impacto por ano no SUS é de menos de 2,5% de tudo que é investido e, para o setor privado, é de menos de 2% do faturamento. É um impacto que pode ser absorvido”, argumenta o deputado que atuou como relator do GT, Alexandre Padilha (PT-SP).
Números
Fabiano Contarato destacou que o cotidiano da categoria é marcado por muita precarização e que muitos profissionais têm mais de um emprego para que possam se manter.
“Esse PL 2564 está dando dignidade a 2,7 milhões de profissionais. E eu falo que esse PL 2.564 é uma pauta feminina, porque, de 2,7 milhões de enfermeiros, de técnicos de enfermagem, de auxiliar de enfermagem e de parteiros, 85% são de mulheres.”
O projeto estabelece pisos de R$ 4.750 para enfermeiros, R$ 3.325 para técnicos e R$ 2.375 para auxiliares e parteiras.
Sanção
O sinal verde dado à PEC por parte das duas casas legislativas do Congresso precede ainda um último capítulo político, que foge da alçada da Câmara e do Senado: a sanção do Projeto de Lei (PL) 2564/20 por parte do presidente Jair Bolsonaro (PL).
Devoto da cartilha neoliberal, o governo é costumeiramente arredio a pautas de direitos trabalhistas. Apesar do sempre existente risco de veto – ainda que parcial – ao PL, a categoria calcula que a eventual medida apenas estenderia o percurso do PL, sem potencial para evitar que posteriormente o piso entre em vigor.
“Temos apoio suficiente para derrubar um veto presidencial, tanto na Câmara quanto no Senado, então, isso dá mais confiança para a gente e nos deixa mais tranquilos”, afirma a presidenta da Federação Nacional dos Enfermeiros (FNE), Shirley Morales.
No serviço público, após ser sancionado o projeto, a medida só começa a valer no ano que vem. Já na esfera privada a exigência deverá ser feita a partir da sanção do texto.
“A prioridade agora tem que ser a sanção pelo presidente. Essa tem que ser a prioridade absoluta. Quando Bolsonaro receber, ele terá 15 dias para sancionar. Isso significa aumentar o salário de mais de 80% dos auxiliares de enfermagem no Brasil, cerca da metade dos enfermeiros e dos auxiliares de enfermagem”, resume o deputado Alexandre Padilha (PT-SP), que foi relator do grupo de trabalho (GT) que discutiu o tema na Câmara.
Presidente
Apesar de avesso aos temas trabalhistas e de dificuldades colocadas pelo governo durante a tramitação, Bolsonaro fez aceno favorável à pauta na quinta-feira. Na tentativa de colher dividendos eleitorais, ele chegou a comparecer à promulgação da PEC, ocasião em que também foi oficializada pela mesa do Congresso a PEC dos Auxílios. A ida do presidente da República a esse tipo de sessão não faz parte do rito tradicional e, portanto, não é comum.
A presença do ex-capitão chamou a atenção e ganhou centralidade no evento, que também contou com a participação de diferentes ministros do governo. Oposicionista ferrenha e uma das principais articuladoras do PL, a deputada Alice Portugal se recusou a ficar para a cerimônia.
“Apesar de ser um ato meramente protocolar, você honra protocolo na democracia. Honrar protocolo com a barbárie não é possível”, justificou, em conversa com o Brasil de Fato. A parlamentar ressaltou que a pauta foi aprovada graças à dedicação da categoria em associação com parte dos parlamentares, a maioria de oposição. “E, com toda a luta, nós conseguimos. Apesar de tudo, acho que nós poderíamos cantar um ‘apesar de você’ pra ele”, ironizou.