Seis poemas dos anos de chumbo *

Iremar Marinho: Poemas de "Memórias de Chumbo", de seu livro "Flores de Cana".

IREMAR MARINHO

1

Noite do golpe

Iremar Marinho

Calada noite de abril.

Notícia: fala obscura

das feras no seu covil.

 

Noite calada de abril,

notícia do fim da tarde,

do fim de festa: Brasil.

 

Noite agitada das botas.

Noite ultrajada do golpe.

Longa noite: lobisomens.

2

Ditadura segue

Iremar Marinho 

ofuscado

do sol-nordeste

perco os olhos

se tateio chuvas

para o corpo febril

 

continuo

criminoso

curvo

corvo turvo

clandestino

 

ditadura

se não passa

permaneço

clandestino

(cão-destino)

de pedaços

 

carnificina

não notificada

estacas no pulso

coração sem sangue

dissecado corpo

 

em vez de plasma

estaca

carpir

 

durmo

sonho

do vampiro

sono

lenta

letargia

 

3

Desencanto

Iremar Marinho 

Todos cantam sua terra,

como vou cantar a minha?

 

Não tenho lira nem versos,

nem belas tardes de abril.

 

Poeta, tu cantarias

tua terra triste assim?

 

4

Canta, Maria 

Iremar Marinho 

Canta no escuro, Maria.

Canta que ele é pai do dia.

 

Espanca toda tristeza

das dobras de tua mesa.

 

Recita chamando a luz,

mesmo sob esse capuz,

 

que o escuro é momentâneo

no fim do subterrâneo.

 

Não vês o sol estival?

Põe as roupas no varal.

 

5

Sonho

Iremar Marinho 

Tudo pode inexistir,

só o sonho é concreto.

 

Cuidado com quem não sonha.

Cuidado, pois, quem não sonha

apaga o sonho dos outros.

 

Muitos de apagados sonhos,

muitos apagando sonhos,

muitos acendendo sonhos.

 

Cuidado com quem não sonha.

Cuidado, pois, quem não sonha

apaga o sonho dos outros.

 

6

Rosas amanhecem vermelhas 

Iremar Marinho 

Lanço este manifesto

Do partido dentro

Manifesto meu partido

Comunista neste pranto

 

Não há mais

o que falar de mim

Nem da carne

Nem dos ossos

Nem do sangue

 

Não há mais

o que esperar aqui

Nem mais rumo

Nem mais rota

Nenhum horizonte

 

Nasci adiante

Sou menos valia

E morri bem antes

 

* (Do livro “Flores de Cana”, seção “Memórias de Chumbo” – 2020)

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