Zefa Lavadeira

Lavadeiras, no rio (ilustração). Foto: Reprodução

Jorge de Lima

Pela vereda que vinha do rio, surgiu cantarolando uma
cafuza nova, com o pote à cabeça, o braço direito erguido, segurando a rodilha.

E senti-a em tudo, — na algazarra dos ramos, na toada das
águas despenhadas, nos vegetais variegados como arraiais, no
tumulto dos seres que sofrem, amam e se perpetuam correndo a
vida.

Josefa — lavadeira, porque se julga a sós, vai despindo as
belezas selvagens de ninfa cafuza.

No remanso em que bate a roupa, há bambus e ingazeiros
pelas margens. Josefa entra o caudal até as coxas morenas, a
camisa arregaçada, o cabeção de crochê impelido pelos seios
duros, tostados de soalheiras.

O braço valente arroja o pano contra a pedra de bater, e a
axila cobre-se e descobre-se, piscando a tentação de arrochos e
rendições cheias de saciedades. Aqui, toda lavadeira de roupa é
boa cantadeira. A cantiga é uma corruptela de velhas toadas num
tom langoroso, alimentado de sofreguidões, de desejos
incontidos, e de lamentações incorrespondidas.

Depois de lavar a roupa dos outros, Zefa lava a roupa que a
cobre no momento. Depois, deixa-se corando sobre o capim. Então
Zefa lavadeira ensaboa o seu próprio corpo, vestido do manto de
pele negra com que nasceu. Outras Zefas, outras negras vêm
lavar-se no rio.

Eu estou ouvindo tudo, eu estou enxergando tudo.
Eu estou relembrando a minha infância. A água, levada nas cuias,
começa o ensaboamento; desce em regatos de espuma pelo dorso,
e some-se entre as nádegas rijas.

As negras aparam a espuma grossa, com as mãos em concha, seios pontudos, transportam-na com agilidade de símios, para os sovacos, para os flancos; quando a pasta branca de sabão se despenha pelas coxas, as mãos côncavas esperam a fugidia espuma nas pernas, para conduzi-la aos sexos em que a África parece dormir o sono temeroso de Cam.

  (De “Poemas Negros” – 1947; trecho de “A mulher Obscura”)

 

*************

Jorge de Lima vê sua infância, com meninas negras do Caípe tomando banho nuas, no Rio Mundaú

A crítica literária é praticamente unânime em constatar que nenhum outro escritor trouxe para sua obra, em todos os gêneros, as memórias da infância, com resultados estéticos tão surpreendentes, como faz o poeta alagoano-palmarino Jorge de Lma.

Como médico, o poeta, provavelmente aproximado da psicanalítica freudiana, entendia o manancial que representam as lembranças na vida dos seres humanos e fixou, como “nódoa”, sua vida, na infância e adolescência, em União dos Palmares e Maceió, para fazê-la jorrar em poesia.

“Lá vem o acendedor de lampiões da rua”, verso magistral, escrito aos 14 anos, já era memória do menino que vira Seu Seraphim, pelas ruas de União, levando aos lares a luz que talvez não tivesse na sua choupana, na Rua da Lama ou no beco da Apertada Hora.

A importância das “falas da memória” para os escritores já foi suficientemente elaborada pela crítica literária  e pela produção acadêmica, e em Jorge de Lima avulta como eixo para produzir uma obra cujo conjunto chegou a ser cogitado para concorrer ao Prêmio Nobel de Literatura.

Embora, no plano doméstico, o poeta tivesse sido “esnobado” e preterido pela Academia Brasileira de Letras, em favor de nomes que jamais alcançariam a projeção literária e a expressão cultural de Jorge de Lima, que transitou por gêneros múltiplos, além da poesia – da pintura e colagem artística à biografia.

“Zefa Lavadeira”, trecho de Jorge de Lima, de Poemas Negros” e de “A Mulher Obscura”, pleno da sensualidade da raça negra, nasce do “moto perene” de suas memórias juvenis, focalizando o seu Rio Mundaú, caudal onde se banham, nuas, as mulheres de sua poesia.

No romance “A Mulher Obscura” há também o trecho “O Banho das Negras”, com as cenas, no Mundaú, das “meninas negras do Caípe”. Jorge de Lima está, ali, escondddo, na beira do rio, observando a cena “proibida”,  mas as moças não sabem. Ele mesmo esclarece, no texto, como um parêntese: “Eu estou ouvindo tudo, eu estou enxergando tudo. Eu estou relembrando a minha infância.”

O poeta ouvindo, enxergando, enfim expressando, na obra literária, seja romance, seja poesia, seja uma colagem ou uma tela pintada, no seu Consultório (médico) Lunar, sua infância transcorrida nas paisagens natais.

Nada mais esclarecedor para se entender toda a profícua  produção cultural do escritor, sobretudo poeta,  Jorge de Lima.                                                                     Iremar Marinho

Share on facebook
Share on twitter
Share on whatsapp